domingo, 9 de novembro de 2008

Obama lá. E aqui?

Fernando Conceição *

E no Brasil, quando vamos ter um(a) presidente(a) da República

negro(a)? A pergunta procede porque se hoje há um consenso nas
declarações públicas, de cima a baixo, a começar de Lula, festejando a
vitória de Barack Obama lá no norte, quantas gerações ainda o Brasil
aguardará para sentir o mesmo orgulho visto mundo afora pelo exemplo
dado pela vigorosa democracia estadunidense? Quantas décadas ainda
serão necessárias para que se geste aqui um(a) candidato(a) com
similares back-ground e antecedentes étnicos, para o(a) qual sejam
oportunizadas - como os Estados Unidos agora enfatizam - condições
iguais e equitativas de disputa política pelo poder real?

É muito gostoso, confortável até, palpitar sobre a vida e a sociedade
alheias. Mas, e a nossa? Os Estados Unidos tem uma minoria negra que
em sua história em média nunca ultrapassou os 13% no conjunto da
população. Óbvio que não foi essa minoria, de cujo percentual deve ser
subtraído um expressivo número de abstêmios e contrários, tão somente
ela a responsável pela consagração de Obama. Ressalte-se, ademais, que
ao se definir "negro" pelos critérios ali adotados estamos falando do
clássico conceito de Oracy Nogueira (Tanto Preto Quanto Branco, 1954),
isto é, considera-se negro quem tem antepassado afrodescendente até a
quinta geração, independentemente do seu fenótipo. Por esse viés,
entre aqueles 13% se inclui inclusive gente que em terra brasilis
seria considerada loira. Tá bom: morena, cravo-e-canela. Aqui já se quis ser
tudo, menos negro, como demonstrou o recenseamento do IBGE na década
de 1980, quando a tabulação dos resultados encontrou mais de 120
auto-definições para os entrevistados que não poderam se declarar
simplesmente brancos.

Nessas plagas, onde os afrodescendentes em toda a história senão
expressiva maioria populacional sempre beiraram pelo menos os 40%, o
critério de definição são os caracteres físicos, aparentes, como
argumentou Nogueira. Na medida em que a sociedade estadunidense, após
o fim da escravidão com a sanguinolenta guerra civil de 1861-65 (há um
ensaio de Edmund Wilson sobre o tema, Sangreira Patriótica, 1962),
construiu nas tensas relações raciais o princípio dogmático "separates
but equals" (separados, mas iguais), os negros vítimas de violenta
segregação e da lei de Lynch foram como "forçados" a se organizar em
auto-defesa, minoria que sempre foram. Essa organização, se
problemática e faccionada, no geral resultou em ganhos. Que se
aceleraram a partir de 1954, depois de a Suprema Corte declarar
inconstitucional a doutrina "separados, mas iguais". Esse foi o
importante fato jurídico inaugural de impulso ao amplo movimento de
"direitos civis". O pastor Martin Luther King Jr. e o presidente John
Fitzgerald Kennedy, ambos depois assassinados por fanáticos radicais,
são os emblemas desse movimento.

O que surpreende e deixa o mundo encantado com a eleição de Obama é
justamente a percepção geral de quanto nos Estados Unidos a "raça" é e
sempre foi fator de dissenso, de tensões extremas. A guerra civil ou
de secessão que quase destrói o país, resultando na morte de 2% da
população (em números de 2008 seriam quase 6 milhões de pessoas!)
poderia ser evitada se Abraham Lincoln, presidente de 1861 a 1865
(também assassinado), não se empenhasse em acabar com a escravidão
negra, estratégica opção econômica. De meados da década de 1950, por
mais de 15 anos ininterruptos os EUA foram internamente engolfados por
uma sucessão de batalhas, concomitantemente jurídicas, legais e
civilmente públicas, com mais tumultos de rua e mais assassinatos, a
exemplo de Malcolm-X e do senador Bob Kennedy, provável sucessor do
irmão ex-presidente. Tais conflitos, registrados na imprensa do mundo
todo, num momento histórico externamente delicado das guerras fria e
do Vietnã, levaram o presidente Lindon Johnson (1963-1969) ordenar em
1967 um amplo diagnóstico, feito pela "Comissão Kerner", por ele
nomeada. Sete meses depois, o veredito que impactou a mentalidade
nacionalista de suas elites: "Nossa nação está caminhando para
dividir-se em duas sociedades, uma negra, outra branca - separadas e
desiguais".

A ascensão de Obama comprova que as instituições políticas, sociais e
econômicas daquele país de contrastes, por sua elite de mando souberam
ler e compreender o alerta da "Comissão Kerner". Tomaram a si, com a
implementação de um conjunto de políticas de ação afirmativa, a
responsabilidade de evitar o que predizia tão chocante diagnóstico. A
decisão de evitar o pior não foi fruto de iniciativas restritas aos
sucessivos governos a partir de Kennedy, Johnson e Richard Nixon
(1969-1974), este o que agiu para a efetiva implantação de políticas
para as minorias. Oferecer, principalmente aos negros, meios que
oportunizavam a igualdade de condições para competir em espaços antes
restritos a não-negros, esta é a ciência que está na base da vitória
eleitoral que muda para sempre a história do mundo moderno, pelo peso
e pela importâcia dos Estados Unidos.

Muito teriam a aprender as elites brasileiras de mando, se não apenas
se regozijassem pelo exemplo dado pela democracia americana, há muito
louvada desde Tocqueville. Aos que nos últimos tempos por aqui
excomungaram as ações afirmativas focadas aos negros, apelando para um
suposto (mas desinformado) fracasso de tais politicas naquele país (o
ataque começou com a eleição em 1981 de Ronald Reagan), eis aí a prova
inconteste. ´


Para os recalcitrantes contrários a qualquer tipo de
avanço que resulte na ascensão de negro(a)s brasileiro(a)s a postos de
relevância política ou econômica, sem nisso admitir as sutilezas do
racismo pátrio na exclusão daqueles não apenas dos quadros partidários
importantes, mas da direção de empresas cotadas na Bolsa ou mesmo das
redações dos jornais, para aqueles restará sempre o consolo de que em
nosso país o povo, inclusive a patuléia negra, é pacífico. Que se
matem nos guetos e sejam exterminados nas favelas. Em nossa sociedade, de homens
cordiais, nunca houve ou haverá algo minimamente remoto à guerra civil
ou às batalhas campais daquele país curioso, mas distante, lá de cima
do norte. Afinal, deus é brasileiro.

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* Autor de "Mídia e Etnicidades no Brasil e nos Estados Unidos: Entre
Zumbi dos Palmares e Malcolm X, Entre Folha de S. Paulo e The New York
Times" (2005). Foi visiting scholar na New York Univesity e na
University of California (1998-1999), e bolsista Fulbright (1994) nos
Estados Unidos. É pesquisador-visitante na Freie Universität Berlin (Alemanha), em pesquisa pós-doutoral/Capes.

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